Heróis de bengalas: o luto pela perda gradual dos pais
Quando o tempo corrói a força dos pais, a negação dá lugar a conflitos, escolhas difíceis e à urgência de repensar o cuidado na velhice
PorMarta Castro Luzbel
5/23/2025

No silêncio dos pequenos momentos, aprendemos que o luto começa muito antes do adeus (Foto: Adobe Stock)
Meus heróis não morreram de overdose. Foram morrendo aos poucos, literalmente. Morreram metaforicamente: envelheceram.
De repente me dei conta de que aquele pai herói, que foi um trabalhador ativo e incansável, que ia atrás do trio elétrico e saía sempre com os amigos, se tornou um homem que anda devagar, repete histórias e esquece coisas. E aquela mãe heroína, que o acompanhava para cima e para baixo, que era amigueira e divertida, está com insônia crônica e humor instável. E que os dois, que sempre foram o casal exemplo, agora vivem às turras, ainda que até hoje assistam à missa e aos filmes de Natal de mãos dadas.

Marta Luzbel, fundadora da Comunidade Bengalas, ao lado do irmão e dos pais, inspiração viva do cuidado que guia seu trabalho (Foto: Arquivo pessoal)
Falei “de repente”? Mas talvez não tenha sido tão de repente… Acho que me dei conta “de repente” porque era cômodo não enxergar o que estava acontecendo. O luto sempre começa pela negação. Meus pais estão vivos, mas meus heróis estão mortos. E eu não queria acreditar.
Quando chegou a fase da aceitação, eu estava cheia de conflitos e de perguntas. Não sabia como dar conta da minha dor e da dor deles. Não sabia o que fazer. Dar autonomia ou intervir? Seguir minha vida ou parar tudo para cuidar? Fingir que não ligo para certas coisas, que não escutei certas coisas, ou me posicionar na autoridade que me concede a inversão de papéis?
Como celebrar a dádiva da vida, dos mais de 80 anos dos meus pais, se diariamente flertamos com a dor da morte? A maioria dos amigos e parentes da mesma geração se foram. Todo mês tem enterro — às vezes mais de um. A dor de vê-los na fila é dilacerante e se mistura com o desejo de que o sofrimento não seja prolongado. Assim como é dilacerante a dor de saber que também estamos na fila e que, na ordem natural das coisas, nós somos os próximos. Eles somos nós amanhã. E nosso sofrimento como filhos, possivelmente, será vivido por nossos filhos.

O olhar atento traduz a luta interna entre respeitar a autonomia e oferecer proteção (Foto: Adobe Stock)
Olho ao meu redor e vejo que não estou só. Irmãos, primos e amigos da mesma geração vivem os mesmos conflitos e o mesmo sofrimento, em maior ou menor grau, cada um à sua maneira, cada um com a sua história. Até que me dou conta de que a minha não é das piores; afinal, meus pais foram cuidadosos, dentro da possibilidade deles, e sempre amorosos. Eles são independentes financeiramente, têm filhos por perto e, acima de tudo, têm um ao outro.
Ao meu lado vejo idosos sozinhos, porque os filhos moram longe ou porque, em algum momento da vida, perderam seus companheiros por morte ou separação. Vejo doenças mais graves que as dos meus pais. Vejo filhos que não foram amados ou cuidados tendo que cuidar desses pais negligentes ou ausentes. Vejo filhos dependentes dos pais e pais dependentes dos filhos.
Imagino a situação em contextos mais severos, quando falta aos idosos e seus filhos o básico: acesso à saúde, assistência e segurança. O desafio se potencializa.

Quando o cuidado diário se mistura à saudade antecipada, cada gesto ganha um significado novo (Foto: Adobe Stock)
Quando nossos pais não morrem ou adoecem precocemente, quando precisamos nos dedicar a eles, é ao mesmo tempo bênção e cruz. Os tempos são outros, e nos falta tempo para dar conta de tudo. Nos sentimos perdidos, não sabemos expressar o que sentimos; às vezes adoecemos física e mentalmente, junto com nossos pais idosos.
Nossa cultura latina, passional, imediatista e materialista não nos prepara para lidar com a velhice nem com a morte. O que seria desafio vira problema. Emergem dores de todos os lados e de toda ordem. Quando teoricamente viria o descanso, vem o cansaço. E, por ironia do destino, percebemos que a sabedoria que a idade traz, paradoxalmente, não nos garante sabedoria para lidar com a própria idade.
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